terça-feira, 27 de novembro de 2012

Drama e sonho ribeirinho


Por Maria Emília Coelho*
“Saí sete horas. Quando foi três da tarde baixaram de voadeira com gasolina e tocaram fogo”. Três anos se passaram e dona Joana não esquece o dia 16 de dezembro de 2009. Pela manhã, foi despejada com o marido e o filho da terra onde morou por mais de 40 anos. Horas depois, soube que sua casa na comunidade Mato Azul havia sido incendiada. Hoje, a senhora de 58 anos não tem onde morar, vivendo de favor. “Quando acaba o movimento na dona Raimunda coloco a minha rede para dormir. Nos expulsaram, sem direito a nada”.
Joana da Silva Ferreira, “nascida e criada em Manicoré”, município do sul do Amazonas às margens do Rio Madeira, contou seu drama no último dia 9 de novembro durante um evento organizado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para a entrega dos TAUS (Termo de Autorização de Uso Sustentável), o documento que regulariza a ocupação das populações que vivem nas várzeas das ilhas e rios federais na Amazônia – áreas pertencentes à União – há séculos.

O TAUS é emitido pela SPU, através do projeto “Nossa Várzea: Cidadania e Sustentabilidade na Amazônia”, e se aplica exclusivamente às comunidades tradicionais. Sem esse documento que regulariza a sua posse, o ribeirinho não tem acesso às políticas públicas de crédito e benefícios, como a aposentadoria rural. Entre os seus objetivos está o combate à grilagem de terras e à exploração da mão-de-obra em condições análogas ao trabalho escravo. Também visa prevenir os conflitos fundiários que se alastram na região sob a omissão do Estado.
Estima-se que cerca de 60% das terras do Amazonas sejam áreas de várzea. Dessas áreas, em torno de 70% são margens de rios federais. Desde 2010, a SPU realiza os trabalhos de cadastramento das populações ribeirinhas do estado. Manicoré é o quarto município onde acontece a emissão de TAUS.
No encontro de novembro, realizado no Centro Juvenil Salesiano da cidade amazonense, cerca de 150 ribeirinhos esperavam ansiosos a entrega dos TAUS pela equipe da SPU. Através de um termo de cooperação técnica, o órgão federal pediu o apoio da prefeitura para mobilizar os comunitários até a sede do município. A expectativa dos organizadores era entregar cerca de 700 termos. Mas, por falha na mobilização, menos de um terço dos ribeirinhos esperados estiveram presentes no evento.

O processo de  regularização fundiária no município à beira do Madeira foi iniciado no ano passado e motivado pelo apelo das comunidades situadas em áreas de conflito. A audiência pública aconteceu em abril de 2011. Depois, os técnicos foram à campo para o georreferenciamento dos terrenos e coleta de dados da população. 1.100 famílias foram cadastradas. A previsão é que até o final de 2013 todos recebam o documento que lhes dará a tão sonhada garantia da terra.

Rodeado de autoridades locais, Alexandre Marcolino Lemes, que na ocasião era coordenador de Regularização Fundiária da SPU no Amazonas, abriu o evento com a notícia ruim: os comunitários das áreas em litígio não receberiam o TAUS naquele dia. Ele explicou que a legislação os impede de regularizar quando a posse não é mansa e pacífica e disse: “Isso não significa que não vão receber, mas só quando houver uma decisão da Justiça”.

Comunidade Mato Azul X Fazenda Ribamar
Esse é o caso da comunidade Mato Azul da dona Joana, do seu Benedito, e de 17 famílias que todos os meses pagam renda ao suposto proprietário da área. João Ricardo dos Reis Moraes e sua família alegam que o lugar, chamado por eles de Ribamar, é de “terra firme”, e que têm, dessa forma, títulos válidos pelo Instituto de Terras no Amazonas (ITEAM). “Herdeiros” dos coronéis de barranco, e influentes na política local, os fazendeiros são acusados de explorar e expulsar os ribeirinhos.
No evento da SPU, uma senhora de Mato Azul, que pediu para não ser identificada, disse que há oito anos paga 800 reais por mês por dois hectares de terra: “Nosso documento não veio e vamos continuar pagando. Se não pagamos eles mandam ofício para tirar a gente do lugar sem direito a nada, como já fizeram com três famílias de lá. Nossa maior esperança era hoje, esperança mesmo de viver em paz”.

Indignado com o despejo da sua vizinha, a dona Joana, e testemunha do incêndio em sua casa, o agricultor Benedito Aparecido Rodrigues, liderança comunitária, iniciou em 2009 a luta para a regularização da área. Em maio de 2010, encorajou os moradores a fazerem um abaixo assinado denunciando as ameaças e agressões que estavam sofrendo.
No ano seguinte, foram realizadas diversas reuniões entre a comunidade e a SPU para tratar do assunto. Ações de cadastramento na área estavam previstas para o final do ano passado, mas não aconteceram. Os donos dos títulos ganharam tempo e acionaram a justiça local, alegando o fim do contrato de arrendamento. No dia 22 de agosto de 2011, Benedito e sua família foram despejados.“Nossos objetos estão até hoje lá jogados. Fogão, motor, tudo enferrujando.”
Benedito conta que, nessa época, tirava de 50 a 80 cachos de banana por corte. Era a comida que levava para suas quatro crianças todos os dias. Hoje, está sem trabalho e vive da ajuda de alguns vizinhos da comunidade. “Meu cacau está produzindo mas não posso tirar porque a área está em litígio. Quero saber por que não posso tirar a minha plantação e o cara lá pode tirar para ele o que eu plantei para os meus filhos? Qual o motivo para a gente ser tão humilhado?”
O funcionário da SPU, Alexandre Leme, disse aos ribeirinhos da comunidade Mato Azul que um juiz do estado do Amazonas, que deu a reintegração de posse aos fazendeiros, julgou em jurisdição federal onde não deveria ter julgado, e que o caso foi levado à AGU (Advocacia Geral da União). “Para nós, foi pedido a caracterização da área. A gente fez e enviou à AGU. Agora o processo está correndo”.
Direito de ribeirinho
João Raimundo Correia da Silva também se sente injustiçado. Seu roçado foi cadastrado pela SPU, mas ele não recebeu o TAUS durante o evento porque mora em Boa Nova, outra comunidade ribeirinha de Manicoré em situação de litígio. “Estamos pagando renda em uma terra que não é para pagar renda, que é da União. Somos filhos de seringueiros, nossos pais nasceram e se criaram aqui. Nós não temos direito nenhum?”
Já o casal Alcilene Cunha de Figueiredo e Francinaldo Rodrigues da Costa está feliz porque vai levar o TAUS para sua casa na comunidade Porto Seguro, a cinco horas de barco de Manicoré. Assim que o receberam, foram a uma papelaria plastificá-lo. “Temos que cuidar do nosso documento. Morávamos em lote dos outros, né? E faz muitos anos que ameaçam tirar a gente de lá, mas agora não vão mais”, contou a mulher com o filho no colo e o sorriso de quem conquistou a segurança da terra. “A gente planta banana, cacau, milho, macaxeira. Tudo dá no nosso roçado.”
Para a engenheira agrônoma com especialização em Ciências do Ambiente, Francivane Fernandes, assessora técnica do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), ONG que atua no sul do Amazonas para a capacitação e o fortalecimento das populações ribeirinhas, o TAUS é um instrumento valioso para esses pequenos agricultores e extrativistas terem acesso à recursos para melhorar e aumentar as suas produções. “Manicoré é hoje o maior produtor de banana e de melancia do estado. Essa é uma oportunidade de desenvolvimento econômico sustentável para o município.”
Dos 704 TAUS levados à Manicoré, apenas 232 foram dados aos moradores das várzeas. Os termos voltaram para Manaus e serão entregues em outra data ainda não marcada pelo órgão federal. Segundo a equipe da SPU, desta vez, para facilitar a vida dos ribeirinhos, os documentos serão entregues em dois polos próximos às comunidades. Enquanto isso, segue a tensão dos conflitos fundiários à beira do Rio Madeira. Desde 2006, ao menos nove pessoas foram mortas por denunciarem os crimes ambientais e de propriedade da terra no Sul do Amazonas – a última, na semana passada. Ciente dos riscos, dona Joana disse que nunca mais voltou para a visitar a sua terra e sua comunidade. “Se têm coragem de queimar minha casa, têm coragem de me matar”.
*Maria Emília Coelho é jornalista, documentarista, e assessora de comunicação do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB).

Reportagem publicada no site da revista Carta Capital: (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/drama-e-sonho-ribeirinho/) 




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